sexta-feira, 29 de março de 2024

19º Capítulo - sexta-feira, 25 de março de 2005

 


19º Capítulo (e último)

Hong-Kong, Amesterdão, Lisboa e Fontanelas -  sexta-feira, 25 de março de 2005 

É dia de regressar à Europa.

Estou saturado do Oriente e das suas particularidades. Já apetece entrar na rotina e normalidade da vida Fontanelense. A nortada de março, o reboliço marítimo, a chuva na festa da Páscoa e a comida saloia quente, tudo me está a parecer idealmente confortável e altamente desejável.

A China é populosa, barulhenta, lotada, confusa, competitiva e saturadora. Tudo mexe a um ritmo frenético como se do último dia da vida se tratasse. Para este saloio nascido e criado na aldeia de Fontanelas isto é reboliço a mais.

Tinha voo marcado para as 10h00 da manhã, pelo que era imperioso levantar cedo e chegar ao aeroporto de Hong-Kong por volta das 8h00. Tarefa complicada se considerarmos o trânsito caótico de Hong-Kong. Fiz o check-out às 6h45, não sem antes me informar que transportes teria que apanhar. Táxi e comboio. Por volta das 8h00 já estava a fazer o check-in do voo no Boeing 747 da KLM com destino a Schiphol, Amesterdão. 

Com os níveis de cafeína no “red line” ainda procurei no aeroporto algum embaixador desta droga por terras do oriente. Encontrei!!! Starbucks. De imediato, e quase em “delirium tremens cafeínico” pedi um expresso, ao qual a menina da caixa me exigiu, de imediato, 38 HKD (Hong Kong Dollar). Pagaria nem que fosse 100 por um café expresso. A menina da caixa, como já tinha acontecido na véspera no outro Starbucks, pediu o café à colega em chinês, a colega perguntou mais qualquer coisa em chinês, a moça da caixa respondeu em chinês e eu a ver navios e chávena para cá, chávena para lá. Resultado: Um cariocazito acastanhado que nem sabia a café. Desisto. Na China não há café!!!

12 ou 13 horas de voo depois, por volta das 3 da tarde (ganhei 8 horas em fuso horário), estaria a aterrar na Europa, onde um airbus da TAP me levaria de regresso a Lisboa. Até que enfim, Portugal. A ponte sobre o Tejo, ou 25 de abril, encarregou-se de me humedecer os olhos. Logo de seguida encarei o temor da trepidante aterragem como um simples balançar dum berço embalado, uma cama quente, um mergulho morno na Praia da Aguda. Que viagem!!!

Sozinho durante quase quinze dias a palmilhar a China, cidade após cidade, fábrica após fábrica, feira após feira, hotel após hotel, finalmente de regresso a casa. Curioso que o que mais me custou não foi a ausência de comunicação, pois acabei por desenferrujar o inglês onde foi possível. Foi não comunicar em português ou com alguém que partilhasse comigo valores, ideias, opiniões. A dificuldade na comunicação é uma constante e provoca afastamento, isolamento. A cultura chinesa, nas grandes cidades por onde andei, assemelha-se ao comportamento de qualquer metrópole onde o individualismo e a competição perduram e florescem. Hong-Kong, Shenzhen, Ningbo, Cixi, Guangzhou, Huizhou são cidades onde as pessoas, na sua maioria, sobrevivem, procurando desesperadamente o “El Dorado” sonhado através dum emprego mal remunerado, a viverem em cubículos pouco maiores que a cama onde se deitam e com uma casa de banho comum para 20 pessoas.

Depois de ver e vivenciar estas realidades, chegado a Fontanelas e sentir o cheiro da minha terra, circular na minha terra e retomar os meus hábitos diários na minha terra, com segurança, abrigo, conforto e restantes mordomias, fez de mim um dos seres humanos mais contentes ao cimo da terra naquele momento. Fiquei eufórico.

Para encerrar com “cerejinha no topo do bolo”, fui, nessa mesma noite e com toda a parcimónia, usufruir dum cheiroso, saboroso, aveludado, com acastanhado creme, numa chávena aquecida previamente, café expresso ao Camacho’s Café Bar, repondo, ao fim de quase duas semanas, os tão desejados níveis de cafeína perigosamente em défice.

Nunca um simples café me tinha sabido tão bem.

Ao beber aquele simples café expresso senti, naquele preciso momento que, finalmente, tinha chegado a casa.

 

Boas viagens.

18º Capítulo - Quinta-feira, 24 de março de 2005

 


18º Capítulo

Hong-Kong, Quinta-feira, 24 de março de 2005

Quero ir a Macau. Para além de ouvir falar muito deste território, as ligações à cultura lusa deixam-me nostálgico e saudosista. A 10.000 quilómetros de casa todas as semelhanças com a minha chaminé são bem-vindas. A esta distância de casa seria bom passear na Rua Cidade de Sintra, freguesia da Sé, em Macau.

Está-me a passar a “pica” de levantar cedo, até porque tenho a companhia do Fernando Mendes, da Serenela Andrade, do José Rodrigues dos Santos e restante staff da RTP Internacional. Após um “very british breakfast” no hotel “very british que não me lembro o nome”, pergunto na recepção como apanhar o ferry para Macau. Por via das dúvidas e para não andar com um porta-documentos muito volumoso ao pescoço por dentro da roupa, opto por não andar com o Passaporte. Deixo-o no pequeno cofre do quarto.

Por questões de segurança levei dois cartões multibanco de débito, de duas contas distintas, caso um deles falhasse poder-me-ia socorrer do outro. Com medo de possíveis assaltos, deixava um deles no quarto e andava com o outro. Fazia levantamentos regulares para pagamento das despesas de hotel e demais necessidades com o cartão que andava comigo. Em Hong Kong tinha cofre. Nos outros hotéis da China continental não. Tive que arranjar um esconderijo seguro e difícil de encontrar (no meu entender). No primeiro hotel da China, o Master Club em Shenzhen,  dei volta ao alojamento e surgiam-me sempre os esconderijos típicos onde todos os possíveis ladrões iriam ver em primeiro lugar. Estava na fase do choque inicial da entrada na China. Tudo me parecia medonho. Então descobri que as cortinas tinham bainha suficientemente alta para caber lá o cartão, já que deixá-lo na pasta ou mala poderia ser menos bom em caso de assalto. Foi só descoser um pouco e já está. Teria que ser um ladrão com muita imaginação para dar com o cartão. Seria um embrulho tremendo se não conseguisse levantar dinheiro nos ATM’s locais.

À data existiam, e julgo que ainda existem, uns eléctricos semelhantes aos nossos eléctricos lisboetas, mas na linha dos típicos autocarros londrinos de dois andares. Nas calmas, fui andando até Henessy Road e aí apanhar um desses eléctricos que fosse para os lados do porto de embarque do “ferry” para Macau. Assim foi. Depois de algum tempo em viagem e filas de espera para adquirir o bilhete, é-me exigido o passaporte. Não deu para embarcar. Também poupei 50€, que seria o custo do bilhete. Decidi inspeccionar a zona do cais dos “ferrys” e eis que, surpresa das surpresas, dou de caras com uma versão própria da bandeira portuguesa. (foto) O consolo encontrar um elo comum a milhões de pessoas onde me incluo, a 10.000km de casa onde ver esta bandeira dá-nos a sensação pertencer a algo, de ter uma origem, uma cultura, algo em comum com muitas outras pessoas. A 10.000Km de casa, vendo esta bandeira, deixamos de estar sós. Como com facilidade me assomam as humidades aos olhos, tive aí e nessa hora mais uma oportunidade que não desperdicei. De regresso à zona do hotel, decidi fazer o percurso a pé, já que tempo é coisa que tenho em abundância. Nessa zona específica, tentei encontrar forma de caminhar nos passeios, sem sucesso. Verdadeiramente estranho. Não existem passeios. Todos os espaços destinados a peões encontram-se acima da rua em plataformas cobertas exclusivamente para tráfego pedonal. Isto durante largos quilómetros dentro de Hong Kong. De surpresa em surpresa, lá fui regressando. Meti por vielas e ruas numa zona mais antiga. É fácil vermos uma camioneta a descarregar pranchas para uma carpintaria no 5º andar de um prédio. A coisa mais normal do mundo é fábricas e fabriquetas ocuparem um prédio de 30 andares. Hong Kong tem um crescimento na vertical. Verdadeiramente estranho. Os andaimes dos prédios em construção são em bambu. Sim, a cana. Bambu. Imaginem um emaranhado de canas de bambu com 30 ou 40 andares, atados com cordéis de sisal e sabe-se lá mais o quê. Os trabalhadores movimentam-se nestas plataformas de bambu como se estivesse no solo, com uma agilidade de fazer inveja a um macaco.

Vou tentar novamente o café no Starbucks, perto do hotel. Ainda não repus os meus níveis de cafeína, pelo que tudo o que seja preto acastanhado, com ou sem espuma, com ou sem aroma, em porcelana, papel ou plástico, cheio ou meio cheio, marcha. A funcionária já não era a mesma. Viam-se alguns ocidentais a beber café com leite nos típicos copos altos com tampa curva de plástico. Grupos de adolescentes a cobiçarem os bolos. “Habitués” na leitura da hora de almoço. Turistas tresmalhados como eu. Que caldeirão. Enfim, peito cheio e … “One expresso, half cup, single, very hot” disse eu á menina que me atendeu no pré-pagamento. Gritou 咖啡杯玛雅,非常热,不加奶para uma outra que estava na máquina de café e eu, atentíssimo, a seguir todos os movimentos como se de alguma coisa valesse, fiscalizava as operações que nem um capataz.      

-“这里它是Disse a moça.

- Hammmm!!!??? respondi eu.

-  要牛奶perguntou ela.

 Fiz uma cara de interrogado e encolhi os ombros. Sem me dar tempo para pestanejar e com uma destreza brutal, vai de atestar com leite. Aaaaaaiiiiiiiiiiiii!!!!!!! Já está. Mais um balde. Peguei no café e pus-me a andar para a mesa a resmungar comigo próprio. Ainda não foi desta. Vou dormir a sesta.

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17º Capítulo - quarta-feira, 23 de março de 2005 (tarde e noite)

 


17º Capítulo 

Hong-Kong, quarta-feira, 23 de março de 2005 (tarde e noite)

Acordei estremunhado com o Fernando Mendes aos berros, agradecendo a oferta de um par de galhardetes, 3 garrafas de vinho tinto e 2 salpicões, oferta da Junta de Freguesia de Vinhais, tudo trazido gentilmente pela D. Rosa, concorrente do Preço Certo daquela tarde.

Que fome.

Após um rápido duche, lá ia ouvindo 25, 30, 28, mais, mais, mais, tá bom, tá bom, menos, Hã??? Quanto? menos? enquanto vestia uma roupa prática adequada para caminhar à vontade. Vou andar por Hong-Kong. Pedi um mapa na receção do hotel e rua que aí vai ele. Comida precisa-se!

Na China come-se muito bem. Desde essa viagem em 2005 que desenvolvi alguma curiosidade pela cozinha chinesa, tal é a sua variedade, qualidade e versatilidade. Tudo o que se possa comer na China (pelo menos nos sítios por onde andei), pouco ou nada tem a ver com as ementas dos restaurantes chineses implantados na Europa. É certo que a China tem quase o tamanho do continente europeu e cada zona tem a sua própria gastronomia. Julgo que na Europa o processo de confeção da comida está altamente desenvolvido para rentabilizar e despachar, associado ao facto de terem procurado ir de encontro ao palato europeu para mais facilmente entrarem no mercado e rentabilizarem. Associado aos restaurantes asiáticos na Europa está também a utilização de produtos que dão mais intensidade ao sabor da comida, nomeadamente o E620, Glutamato Monosódico, mais conhecido pelo Sal Chinês. Nada notei lá. Por aquilo que me apercebi, na China dão especial atenção aos produtos naturais, no sentido de estar vivo até ir para o Wok ou para a panela. O peixe está vivo nos alguidares pejados de mangueiras a oxigenar, até ser “pescado” com um camaroeiro e morto ali, com um cutelo típico dos cozinheiros chineses (aqueles cutelos que se viam nos filmes de Kung Fu em que o cozinheiro chinês, a gritar que nem um desalmado, atacava o Bruce Lee). Os produtos são fresquíssimos, saborosos, estão tenros, têm molho natural e tudo confecionado à nossa frente em tempo record com uma energia e sabedoria invejáveis. Bestial.

Desde 2005 que passei a utilizar diariamente os pauzinhos chineses nas minhas refeições. Utilizo frequentemente o Wok e uma panóplia de ingredientes asiáticos, não necessariamente e só chineses. Uma das formas mais características de cozinhar qualquer alimento é com uma simples e prática panela de vapor em bambú de dois níveis, colocada dentro do Wok ou de um tacho largo com dois dedos de altura de água. O vapor da água a ferver coze os alimentos de uma forma pouco intrusiva e mantém a sua forma e textura, para além de não se perderem sais minerais e outras propriedades importantes. Existe uma versão de cozedura a vapor mais recente bastante eficaz. Uma rede em forma de pétala que se fecha ou abre consoante o tamanho da panela ou tacho.

Chá verde. Ao chegar à mesa do restaurante a meio da tarde, vai de “atestar o balde”. É a primeira coisa que o funcionário faz antes de tomar nota do pedido. Nessa refeição em Hong Kong nem sei o que comi, já que apontei para a mistela que o cozinheiro manipulava, baseado num sugestivo monte de noodles regados com um cremoso molho acastanhado, aqui e ali salpicado com umas coisinhas verdes. Foi um almoço ajantarado, como a maior parte das refeições. Come-se a toda a hora, de qualquer forma e em qualquer circunstância. Os restaurantes/tascas/casas de comida estão permanentemente abertos. Passei grande parte do tempo a tentar digerir depressa para ir outra vez provar mais outro qualquer petisco cobiçado pela gula irresistível. Poucas vezes comi em restaurantes propriamente ditos com toalha e guardanapo de pano. Na maior parte das vezes alinhava mais nas tascas tipo “bifana na montra”, onde metade da refeição era logo ali devorada com os olhos. Para ajudar na digestão, caminhei até mais não. Entretanto anoiteceu e a noite em Hong-Kong é luminosa, cheia de neons coloridos, agitada, barulhenta, cosmopolita.

Havia alguns dias que estava com um défice de cafeína acentuado, tendo atingido um nível preocupante. Uma acção imediata impunha-se. Hong Kong tem que ter um antro do café. Decidi procurar e tornar a procurar. Calcorreei metade de Hong Kong, passei por espremedores de cana de açúcar, bancas de ananás fresco, vendedores de coco aos bocados, roulottes de sumos de tudo e mais alguma coisa, tascas e mais tascas, lojas de tudo quanto é marca, já via luxo e mais luxo até à exaustão e café… nada!!! Já pela noite dentro e quase a desistir pelo cansaço, eis que junto ao hotel numa praça com um centro comercial, descobri uma loja do principal embaixador da globalização cafeínica: STARBUCKS!!! Uma autentica meca do principal distribuidor da cafeína no mundo. É desta que vou beber um expresso coffee, half cup, com ou sem espuma, tanto faz, com boas maneiras ou sem boas maneiras, custe 1 ou custe 10, cafeína precisa-se. Em Hong-Kong a língua falada era e continuou a ser o cantonês, embora o inglês fosse falado por uma grande parte da população. É fácil fazermo-nos entender e sermos entendidos em inglês. Tal não aconteceu com a zelosa funcionária do Starbucks, algures em Hong Kong. Estava condenado. Um cariocazito com uma espuma amarelada, escanzelado, agua-pé de café, restos da espremedura gasta de uma borra mal moída de meia dúzia de grãos de café. Bolas. Que beberragem aquela! Ainda não foi desta. Com o hotel a 200 metros, cansado dos quilómetros a pé, com saudades do Fernando Mendes e da Serenella Andrade, dei entrada no 4º andar do “very british hotel que não me lembro o nome”, snob, coçado, colonial… . Acho que era o José Rodrigues dos Santos que estava de serviço a botar faladura sobre o fim-de-semana prolongado, já que Sexta-Feira era Santa, nas vésperas da Páscoa, mais isto e mais aquilo…

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